POR MUITO QUE MINTA, JOÃO NUNCA SERÁ JONAS

Há 36 anos, o xadrez da geopolítica mundial jogava-se em terras angolanas no distante Cuito Cuanavale, transformado no palco da última grande batalha da Guerra Fria, uma história com diferentes versões com muito ainda por contar.

Entre 15 de Novembro de 1987 e 23 de Março de 1988, ali se enfrentaram as Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA) do Estado angolano (leia-se MPLA), apoiadas por Cuba e pela União Soviética, e os militares das FALA, exército da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), liderados por Jonas Savimbi, que desde 1975 disputavam o poder ao MPLA e que eram apoiados por forças sul-africanas.

Mas no memorial consagrado à batalha, na pequena localidade com o mesmo nome, na província do Cuando Cubango (centro-sul de Angola), o papel da UNITA é totalmente omitido, aclamando o MPLA (no Poder há 49 anos) uma vitória gloriosa que permitiu libertar a África Austral das grilhetas do apartheid.

Inaugurado em 2017, o monumento alude ao dia 23 de Março de 1988, tida pelo MPLA como a data que “trouxe a libertação da África Austral”, como propagandeia no cumprimento de ordens superiores do MPLA, António Chilulo, director do memorial, apontando entre os beligerantes “duas potências, socialista e capitalista”, que se confrontaram neste palco africano da Guerra Fria.

A UNITA tem classificado a efeméride como um elemento de propaganda e uma deturpação da história. História que, segundo o MPLA, só pode e deve ser escrita pelos “peritos” do MPLA. Aliás, segundo o partido que desgoverna angola desde a independência, a História de Angola é a história do MPLA.

No espaço pomposamente designado como “Memorial à Vitória da Batalha do Cuito Cuanavale” sobressai uma impressionante estátua de bronze, com dois soldados a erguerem o mapa de Angola a uma altura de 18 andares, totalizando 110 toneladas de metal com o estilo triunfal da arte comunista.

À volta, peças rectangulares de mármore simbolizam os que (do MPLA, de Cuba e da União Soviética) caíram na batalha.

Uma outra peça escultórica, de nome “Parede dos Heróis”, retrata, de forma dramática e apoteótica, os horrores da guerra e o sofrimento do povo angolano evocando os acontecimentos trágicos que ali tiveram lugar.

Apesar dos relatos vitoriosos do museu, que retrata os acontecimentos na perspectiva do partido que governa Angola desde a independência em 1975 (MPLA), a história não é consensual.

Dependendo do ponto de vista do MPLA, o Cuito Cuanavale é descrito como uma derrota do exército sul-africano (SADF), uma retirada táctica das mesmas forças ou um empate, como descreve o site South African History Online.

O museu-pirâmide, outra área museológica deste enorme recinto de 60 hectares, acolhe os visitantes com um acervo de fotografias e documentos da época, onde também se destaca a ausência de referências à UNITA e aos seus combatentes, em contraste com a profusão de retratos de individualidades ligadas às forças do MPLA, citações do antigo Presidente José Eduardo dos Santos e descrições de operações e manobras tácticas.

Não há também registo de mortos e feridos porque, justifica António Chilulo, “a batalha foi muito vasta” em termos de extensão do território e período temporal. “Ficou aqui muita gente, mas não conseguimos contá-los”, disse.

O director do memorial reconheceu, no entanto, que “ambas as partes têm de escrever a história do Cuito Cuanavale” e disse que há negociações em curso para que também a UNITA possa dar a sua versão dos acontecimentos.

“Se todos escrevermos, cada um tem a sua versão, cada um deve pegar a sua lapiseira para fazer o livro a contar a história do Cuito Cuanavale”, afirmou, frisando que esta batalha “não trouxe só um ganho para o Governo, trouxe um ganho para o país e para o mundo”.

Na ampla zona exterior, destacam-se ainda os inevitáveis equipamentos bélicos, 18 peças usadas na batalha desde Migs-21 de fabrico soviético e helicópteros a rampas de lançamento de mísseis e armas de defesa antiaérea.

Alguns quilómetros à frente, o guia Salomão Miguel prossegue a visita, através de um parque temático conhecido como Triângulo do Tumbo, onde as memórias violentas são novamente convocadas, desta feita numa pequena escultura com cruzes.

No campo recria-se um posto de comando – da 25.ª Brigada, do comandante Valeriano, um dos protagonistas da batalha – numa trincheira, destroços de canhão e restos de tanques.

O Governo quer fazer desta terra, outrora sangrenta, um polo de atracção turística, mas, por enquanto, apesar do ambiente ser de paz, os turistas não encontram infra-estruturas adequadas para que se possam deter por aqui.

Além do memorial e da história, nada mais há para oferecer e desfrutar da paisagem, embora esteja prometida a construção de um hotel. A única alternativa é hoje uma hospedaria-restaurante, para turistas pouco exigentes e que se contentem com banhos de caneca em vez de água corrente.

Eulária, a proprietária, diz que a localidade já recebe, “graças a Deus”, muitos turistas e conta ter tido já clientes de Portugal, Brasil e África do Sul.

Entre os turistas, há também antigos combatentes sul-africanos e cubanos que se emocionam ao reviver as memórias desse período, como descreveu o guia Salomão.

E A MINHOCA DIZ QUE FOI… JIBÓIA

O MPLA, partido presidido pelo general João Lourenço, mantém-se firme na mentira sobre a Batalha do Cuíto Cuanavale: “A vitória das FAPLA, tutelada pelo Governo angolano, criou as condições para a independência da Namíbia, libertação de Nelson Mandela e a abolição do regime do Apartheid na África do Sul”.

Deixemos a propaganda do MPLA e vejamos a realidade factual e histórica. A Batalha do Cuíto Cuanavale ocorreu numa situação em que se estava já a negociar, quer a retirada das tropas cubanas de Angola, quer a retirada das tropas sul-africanas de Angola e da Namíbia. Essa Batalha foi uma resposta da UNITA à ofensiva do MPLA contra Mavinga, que tinha como objectivo principal a tomada da Jamba. A Batalha do Cuíto Cuanavale não existiu sozinha. Para se ter uma ideia concreta do que na realidade se passou, vejamos a cronologia dos acontecimentos dessa época:

ABRIL 1987 – Com operações de baixa intensidade, começa a “ofensiva Lomba 87”, conhecida por “Operacion Saludando Octubre” entre os cubanos.

3-4 MAIO 1987 – Representantes de Angola, Cuba e África do Sul reuniram-se no Hotel Brown de Londres, sob a mediação dos Estados Unidos da América.

24-25 JUNHO 1987 – Verificou-se uma ronda de negociações entre Angola e a África do Sul, no Cairo (Egipto).

11-12 JULHO 1987 – Angola, Cuba e África do Sul acordaram que a Resolução 435/78 da ONU seria implementada após a retirada das tropas sul-africanas de Angola, o que era uma grande concessão por parte da África do Sul.

12 JULHO 1987 – Início da movimentação das Brigadas 16ª, 21ª, 47ª e 59ª das FAPLA (Forças Armadas do MPLA), com mais de 20 mil homens, para a ofensiva militar às áreas então ocupadas pela UNITA no Cuando Cubango, naquilo que o movimento do Galo Negro denominou como tendo sido a “Batalha Lomba 87” e os cubanos chamaram “Operação Saludando Octubre.”

21-22 JULHO 1987 – Reunião de emergência entre Angola e África do Sul, em Cabo Verde, devido a um ataque feito pela África do Sul à SWAPO, no início da segunda quinzena de Julho. Nessas negociações de Cabo Verde, a África do Sul propôs a retirada completa das suas tropas de Angola em simultâneo com a movimentação para norte das forças cubanas.

AGOSTO 1987 – O Presidente José Eduardo dos Santos propõe aos americanos o prazo de dois anos para a retirada das tropas cubanas presentes no Sul de Angola contra o anterior prazo de três anos apresentado em 1984. Em contrapartida, exigiu uma data para o início da aplicação da Resolução 435/78, o fim do apoio militar americano à UNITA e a manutenção das tropas cubanas estacionadas no Norte de Angola.

SETEMBRO 1987 – Combates encarniçados na área do Rio Lomba que enfraqueceram a capacidade ofensiva das forças do MPLA (FAPLA).

11 OUTUBRO 1987 – Destruição da 47ª Bragada das FAPLA e início do fim da ofensiva a Mavinga e à Jamba. Com a destruição da 47ª Brigada, numa verdadeira inflexão da situação militar, Luanda ordenou o regresso das forças restantes para o Cuíto Cuanavale. O tenente coronel soviético Zhdarkin escreveu no seu diário que “a derrota esmagadora da 47ª Brigada afectou seriamente a 16ª, 21ª e 59ª Brigadas, assim como a situação militar como um todo.”

12 OUTUBRO 1987 – A UNITA inicia a perseguição às tropas das brigadas FAPLA e das forças cubanas, e empurrando-as até às proximidades do Cuíto Cuanavale, tendo-se travado violentos combates.

28 OUTUBRO 1987 – A UNITA captura os pilotos Ramón Quesada Aguilar e Manuel Rojas Garcia quando iam bombardear as áreas sob ocupação da UNITA. No seu livro publicado posteriormente, o piloto cubano Rojas Garcia descreveu as dificuldades sofridas pelas FAPLA nesta ofensiva e as circunstâncias da destruição da 47ª Brigada.

OUTUBRO 1987 – MARÇO 1988 – Continuação dos ataques da UNITA, apoiadas pelas forças sul-africanas, ao Cuíto Cuanavale e aos arredores desta cidade com a finalidade de desgastar ao máximo as tropas do governo angolano que anualmente lançavam ofensivas visando a ocupação de Mavinga que na estratégia do Governo de Angola, serviria de plataforma para o assalto à Jamba.

NOVEMBRO 1987 – Perante a eminência de uma derrota militar completa e sem que da parte dos soviéticos houvesse uma maneira airosa de se sair dessa situação, José Eduardo dos Santos pediu ajuda militar urgente ao Presidente Fidel Castro. El Comandante, que precisava de encontrar uma maneira de entrar com mais força nas negociações que iriam implicar a retirada das suas tropas, viu nesse pedido uma oportunidade de ouro. Sob o nome de código “Manobra XXXI Aniversário”, Fidel Castro entrou com toda a força. Os primeiros destacamentos de blindados e de artilharia cubanos foram enviados para o Cuíto a partir de Menongue e avançaram os 200 quilómetros sob cobertura dos MiG 21 e dos MiG 23. Outra medida decisiva foi a de enviar desde Cuba os melhores pilotos de MiG-23 em voos directos de Ilyushin Il-62M. Os MiG-23ML do Tenente Coronel Armando González “El Guajiro” concentraram-se em Menongue e actuaram desde esta base aérea, juntamente com os MiG-21. Outro esquadrão completo de MiG-23ML foi enviado de Cuba no navio “Las Coloradas”. A primeira tarefa dos MiG-23ML, foi cobrir o recuo das FAPLA até Cuíto Cuanavale. Algumas fontes avaliam em pelo menos 15.000 a quantidade de tropas cubanas no teatro do Cuíto Cuanavale, de Novembro de 1987 a Março de 1988.

13-14 JANEIRO 1988 – 21ª Brigada apoiada pelas Forças cubanas sofre uma derrota pesada.

29 JANEIRO 1988 – O Subsecretário de Estado norte-americano, Chester Crocker, acompanhado de peritos americanos, encontrou-se em Luanda com as autoridades angolanas, tendo os americanos aceite a presença de uma delegação cubana chefiada por Jorge Risquet descrito como tendo tido uma atitude “não obstrucionista”. Os EUA aceitaram a presença de Cuba nas negociações com Angola e com a África do Sul, porque acharam que assim se conseguiriam mais avanços. Os americanos acharam também que Castro precisava de uma saída honrosa da sua intervenção em Angola, por isso deveria ser parte das negociações.

MARÇO 1988 – A 23 de Março ocorre a Batalha do Tumpo que acabou num impasse. Depois disso, as forças sul-africanas abandonaram o teatro do Cuíto Cuanavale.

3 MAIO 1988 – O jornal espanhol La Vanguardia anunciou o início, em Londres, de negociações entre os Estados Unidos, Cuba, África do Sul e Angola, sobre como resolver a situação prevalecente em Angola e na Namíbia. Na realidade, para Cuba e para a África do Sul, as negociações tinham começado 3 anos antes.

13 DEZEMBRO 1988 – Foi assinado um acordo, denominado Protocolo de Brazzaville: recomendava-se ao Secretário-Geral das Nações Unidas, a data de 1 de Abril de 1989, como sendo a do início da implementação da Resolução 435 e os Acordos foram assinados a 22 de Dezembro de 1988, em dois documentos diferentes: um entre Angola e Cuba e o outro entre a África do Sul e Angola. Por esses Acordos, Angola e Cuba comprometeram-se a cumprir os termos da saída das tropas cubanas de Angola, as quais deveriam ser retiradas até 1 de Julho de 1991, tal como tinha sido discutido; a África do Sul e Angola comprometeram-se a cumprir os termos da implementação da Resolução 435/78, tal como acordado nas negociações que levariam à independência do Sudoeste Africano, em 1990.

DEZEMBRO 1989 – Início da “ofensiva Último Assalto” pelas FAPLA com o apoio soviético, a partir do Cuíto Cuanavale. O objectivo era, uma vez mais, tomar Mavinga e depois a Jamba. Essa ofensiva não teve sucesso. A 6 de Maio de 1990, as FAPLA iniciaram o seu regresso ao Cuíto Cuanavale.

Com esta realidade conclui-se que:

1. A batalha do Cuíto Cuanavale foi parte da contra-ofensiva da UNITA à ofensiva mal sucedida do MPLA para tomar Mavinga e a Jamba;

2. As negociações para a retirada cubana de Angola e a retirada sul-africana de Angola e da Namíbia começaram vários meses antes do desfecho da Batalha do Cuíto Cuanavale;

3. O Cuíto Cuanavale não foi a última batalha dessa fase da guerra. Sem a presença de cubanos e de sul-africanos, os irmãos angolanos ainda se defrontaram no “Último Assalto”, 18 meses depois do Cuíto Cuanavale.

Em resumo, se houve vencedores, não foram as forças do MPLA e os seus aliados. Então o que comemora o MPLA? Nada a não ser o que a sua propaganda inventa.

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